A Obsolescência das Tarefas Domésticas se Aproxima: Uma Perspectiva da Classe Trabalhadora

Angela Davis

1981


Retirado do livro Mulheres, Raça e Classe.


Os incontáveis afazeres que, juntos, são conhecidos como “tarefas domésticas” – cozinhar, lavar a louça, lavar a roupa, arrumar a cama, varrer o chão, ir às compras etc. –, ao que tudo indica, consomem, em média, de 3 mil a 4 mil horas do ano de uma dona de casa[1]. Por mais impressionante que essa estatística seja, ela não é sequer uma estimativa da atenção constante e impossível de ser quantificada que as mães precisam dar às suas crianças. Assim como as obrigações maternas de uma mulher são aceitas como naturais, seu infinito esforço como dona de casa raramente é reconhecido no interior da família. As tarefas domésticas são, afinal de contas, praticamente invisíveis: “Ninguém as percebe, exceto quando não são feitas – notamos a cama desfeita, não o chão esfregado e lustrado”[2]. Invisíveis, repetitivas, exaustivas, improdutivas e nada criativas – esses são os adjetivos que melhor capturam a natureza das tarefas domésticas.

A nova consciência associada ao movimento de mulheres contemporâneo encorajou um número crescente de mulheres a reivindicar que seus companheiros ofereçam algum auxílio nesse trabalho penoso. Muitos homens já começaram a colaborar com suas parceiras em casa, alguns deles até devotando o mesmo tempo que elas aos afazeres domésticos. Mas quantos desses homens se libertaram da concepção de que as tarefas domésticas são “trabalho de mulher”? Quantos deles não caracterizariam suas atividades de limpeza da casa como uma “ajuda” às suas companheiras?

Se fosse possível acabar com a ideia de que as tarefas domésticas são um trabalho da mulher e, ao mesmo tempo, redistribuí-las igualmente entre homens e mulheres, esta seria uma solução satisfatória? Liberadas de sua associação exclusiva com o sexo feminino, as tarefas domésticas deixariam de ser opressivas? Embora a maioria das mulheres comemore com alegria o advento do “dono de casa”, desvincular o trabalho doméstico do sexo não alteraria verdadeiramente a natureza opressiva do trabalho em si. Em última análise, nem as mulheres nem os homens deveriam perder horas preciosas de vida em um trabalho que não é nem estimulante, nem criativo, nem produtivo.

Um dos segredos mais bem guardados das sociedades capitalistas avançadas envolve a possibilidade – a real possibilidade – de transformar radicalmente a natureza das tarefas domésticas. Uma parte substancial das incumbências domésticas das donas de casa pode de fato ser incorporada na economia industrial. Em outras palavras, as tarefas domésticas não precisam mais ser consideradas necessária e imutavelmente uma questão de caráter privado. Equipes treinadas e bem pagas de trabalhadoras e trabalhadores, indo de casa em casa, operando máquinas de limpeza de alta tecnologia, poderiam realizar de forma rápida e eficiente o que a dona de casa atual faz de modo tão árduo e primitivo. Por que um manto de silêncio cobre essa possibilidade de redefinir radicalmente a natureza do trabalho doméstico? Porque a economia capitalista é estruturalmente hostil à industrialização das tarefas domésticas. A socialização das tarefas domésticas implica amplos subsídios governamentais, a fim de garantir que se torne acessível às famílias da classe trabalhadora, para as quais a necessidade desse serviço é mais evidente. Uma vez que, em termos de lucro, o resultado seria pequeno, a industrialização das tarefas domésticas – como todas as iniciativas que não geram lucro – é um anátema para a economia capitalista. Contudo, a rápida expansão da força de trabalho feminina significa que mais e mais mulheres consideram cada vez mais difícil se destacar como donas de casa segundo os padrões tradicionais. Em outras palavras, a industrialização das tarefas domésticas, junto com sua socialização, está se tornando uma necessidade social concreta. As tarefas domésticas, enquanto responsabilidade individual reservada às mulheres e trabalho feminino realizado sob condições técnicas primitivas, finalmente podem estar chegando ao ponto de obsolescência histórica.

Embora as tarefas domésticas, como as conhecemos hoje, possam vir a se tornar velhas relíquias históricas, as atitudes sociais predominantes continuam a associar a eterna condição feminina a imagens de vassouras e pás de lixo, esfregões e baldes, aventais e fogões, vasilhas e panelas. E é verdade que o trabalho da mulher, de uma era histórica a outra, tem sido geralmente associado ao ambiente doméstico. Ainda assim, o trabalho doméstico feminino nem sempre foi o que é hoje, uma vez que, como todos os fenômenos sociais, as tarefas domésticas são um produto dinâmico da história humana. Da mesma forma que sistemas econômicos surgem e desaparecem, o escopo e a qualidade das tarefas domésticas passaram por transformações radicais.

Como Friedrich Engels argumenta em sua obra clássica Origem da família, da propriedade privada e do Estado[3], a desigualdade sexual, como a conhecemos hoje, não existia antes do advento da propriedade privada. Durante as primeiras eras da história da humanidade, a divisão sexual do trabalho no interior do sistema de produção econômica era complementar, e não hierárquica. Nas sociedades em que os homens eram responsáveis por caçar animais selvagens e as mulheres, por colher legumes e frutas, os dois sexos tinham incumbências econômicas igualmente essenciais à sobrevivência de sua comunidade. Uma vez que, durante esses períodos, a comunidade era basicamente uma família estendida, o papel central das mulheres nas questões domésticas significava que elas eram adequadamente valorizadas e respeitadas como membros produtivos da comunidade.

A centralidade das incumbências domésticas das mulheres nas culturas précapitalistas foi representada em uma experiência pessoal durante uma viagem de jipe que fiz, em 1973, pelas planícies de Masai. Em uma estrada de terra isolada da Tanzânia, vi seis mulheres masai que balançavam, de modo enigmático, uma enorme prancha na cabeça. Como minhas amigas tanzanianas explicaram, essas mulheres provavelmente estavam transportando o telhado de uma casa para um novo vilarejo em construção. Entre o povo masai, vim a saber, as mulheres são responsáveis por todas as atividades domésticas, portanto também pela edificação das casas, frequentemente realocadas, de seu povo nômade. As tarefas domésticas, no que diz respeito às mulheres masai, supõem não apenas cozinhar, limpar, cuidar das crianças, costurar etc., mas também a construção da casa em si. Por mais importantes que sejam as tarefas pecuárias de seus companheiros, as “tarefas domésticas” das mulheres não são menos produtivas nem menos essenciais do que as contribuições econômicas dos homens masai.

Na economia nômade e pré-capitalista dos masai, o trabalho doméstico das mulheres é tão essencial quanto a criação de gado realizada pelos homens. Em termos de produtividade, elas gozam de um prestígio social igualmente importante. Nas sociedades capitalistas avançadas, por outro lado, o trabalho doméstico, orientado pela ideia de servir e realizado pelas donas de casa, que raramente produzem algo tangível com seu trabalho, diminui o prestígio social das mulheres em geral. No fim das contas, a dona de casa, de acordo com a ideologia burguesa, é simplesmente a serva de seu marido para a vida toda.

A origem da noção burguesa de que a mulher é a eterna serva do homem carrega em si um enredo revelador. Na relativamente breve trajetória dos Estados Unidos, a “dona de casa” enquanto produto histórico acabado existe há pouco mais de um século. Durante o período colonial, as tarefas domésticas eram totalmente diferentes da rotina de trabalho diária da dona de casa nos Estados Unidos de hoje.

O trabalho da mulher começava ao nascer do sol e continuava sob a luz da fogueira, pelo tempo que ela conseguisse manter os olhos abertos. Por dois séculos, quase tudo que a família usava ou comia era produzido em casa sob sua orientação. Ela fiava e tingia o fio com que tecia o pano, que ela cortava e costurava para fazer as roupas. Ela cultivava grande parte dos alimentos que sua família comia e reservava o suficiente para os meses de inverno. Ela fazia a manteiga, o queijo, o pão, as velas, o sabão e tricotava as meias da família [4].

Na economia agrária pré-industrial da América do Norte, uma mulher realizando seus afazeres domésticos era, portanto, fiadeira, tecelã, costureira e também padeira, produtora de manteiga, fabricante de velas e de sabão. Et cetera, et cetera, et cetera. Na verdade, as exigências da produção doméstica deixavam pouco tempo para as incumbências que, hoje, nós reconheceríamos como tarefas domésticas. Sem dúvida, para os padrões atuais, as mulheres do período anterior à Revolução Industrial eram administradoras do lar desleixadas. Em vez da limpeza diária ou da faxina semanal, havia a faxina de primavera. As refeições eram simples e repetitivas; as roupas não eram trocadas com frequência; a roupa suja da casa podia acumular-se, e a lavagem era feita uma vez por mês ou, em algumas casas, uma vez a cada três meses. E, claro, como cada lavagem requeria carregar e esquentar vários baldes de água, padrões mais exigentes de limpeza eram facilmente desencorajados [5].

As mulheres do período colonial não eram “faxineiras” ou “administradoras” da casa, e sim trabalhadoras completas e realizadas no interior da economia baseada na casa. Elas não apenas produziam a maioria dos artigos de que sua família precisava, como também eram protetoras da saúde da família e da comunidade: “Era responsabilidade [da mulher do período colonial] colher e secar as ervas selvagens usadas [...] como remédios; ela também atuava como médica, enfermeira e parteira em sua própria família e na comunidade” [6].

O United States Practical Receipt Book – popular livro de fórmulas e receitas da colônia – trazia receitas de pratos culinários, bem como de produtos para a casa e remédios. Para curar micoses, por exemplo, “adquira um pouco de sanguinária [...] corte e coloque em vinagre, depois lave a região afetada com o líquido” [7]. A importância econômica das funções domésticas das mulheres na América colonial era complementada por seus papéis visíveis na atividade econômica fora de casa. Era perfeitamente aceitável, por exemplo, que uma mulher fosse a responsável por uma taberna.

Mulheres também dirigiam serrarias e moinhos, encordoavam cadeiras e faziam móveis, operavam abatedouros, estampavam algodão e outros tecidos, faziam renda, eram proprietárias e gerentes de mercearias e lojas de roupas. Trabalhavam em tabacarias, drogarias (onde vendiam poções que elas mesmas faziam) e lojas que vendiam desde alfinetes a balanças de carne. Mulheres montavam óculos, faziam redes e cordas, cortavam e costuravam artigos de couro, faziam cardas para a cardação da lã e eram até pintoras de paredes. Com frequência, eram elas as coveiras da cidade [...] [8].

A onda pós-revolucionária de industrialização resultou em uma proliferação de fábricas na região nordeste do novo país. As fábricas têxteis da Nova Inglaterra foram as primeiras bem-sucedidas do sistema fabril. Como fiar e tecer eram ocupações domésticas tradicionalmente femininas, as mulheres foram as primeiras a ser recrutadas pelos donos de fábricas para operar os novos teares a vapor. Considerando-se a subsequente exclusão das mulheres da produção industrial como um todo, trata-se de uma das grandes ironias da história econômica desse país o fato de que a mão de obra industrial pioneira foi constituída por elas.

À medida que a industrialização avançava, transferindo a produção econômica da casa para a fábrica, a importância do trabalho doméstico das mulheres passou por um desgaste sistemático. Elas foram as perdedoras em duplo sentido: uma vez que seus trabalhos tradicionais foram usurpados pelas fábricas em expansão, toda a economia se deslocou para longe da casa, deixando muitas mulheres em grande parte despojadas de papéis econômicos significativos. Em meados do século XIX, a fábrica fornecia tecidos, velas e sabão. Até mesmo a manteiga, o pão e outros artigos alimentícios começaram a ser produzidos em massa.

No fim do século XIX, dificilmente alguém ainda fazia a própria goma de tecido ou fervia roupas nas caldeiras. Nas cidades, as mulheres compravam prontos o pão e pelo menos as roupas de baixo, mandavam suas crianças para as escolas e provavelmente algumas roupas para as lavanderias e discutiam as vantagens da comida enlatada [...]. A indústria havia seguido seu fluxo e deixado encostados o tear no sótão e a caldeira de sabão no galpão [9].

À medida que o capitalismo industrial de aproximava de sua consolidação, a clivagem entre a nova esfera econômica e a velha economia familiar se tornava mais rigorosa. A realocação física da produção econômica provocada pela expansão do sistema fabril foi, sem dúvida, uma transformação drástica. Contudo, ainda mais radical foi a revalorização generalizada da produção necessária ao novo sistema econômico. Enquanto os bens produzidos em casa tinham valor principalmente porque satisfaziam às necessidades básicas da família, a importância das mercadorias produzidas em fábricas residia predominantemente em seu valor de troca – em seu poder de satisfazer as demandas por lucro dos empregadores. Essa revalorização da produção econômica revelou, para além da separação física entre casa e fábrica, uma fundamental separação estrutural entre a economia familiar doméstica e a economia voltada ao lucro do capitalismo. Como as tarefas domésticas não geram lucro, o trabalho doméstico foi naturalmente definido como uma forma inferior de trabalho, em comparação com a atividade assalariada capitalista.

Um importante subproduto ideológico dessa transformação econômica radical foi o surgimento da “dona de casa”. As mulheres começaram a ser redefinidas ideologicamente como as guardiãs de uma desvalorizada vida doméstica. Como ideologia, entretanto, essa redefinição do lugar das mulheres entrava em flagrante contradição com os grandes números de mulheres imigrantes que inundavam as fileiras da classe trabalhadora no Nordeste. Essas imigrantes brancas eram, em primeiro lugar, trabalhadoras assalariadas e, apenas de modo secundário, donas de casa. E havia outras mulheres – milhões de mulheres – que trabalhavam duramente fora de casa como produtoras forçadas da economia escravagista do Sul. A realidade do lugar da mulher na sociedade estadunidense do século XIX envolvia as mulheres brancas, cujos dias eram gastos na operação das máquinas das fábricas em troca de salários extremamente baixos, assim como certamente envolvia as mulheres negras, que trabalhavam sob a coerção da escravidão. A “dona de casa” refletia uma realidade parcial, pois ela era, na verdade, um símbolo da prosperidade econômica de que gozavam as classes médias emergentes.

Embora a “dona de casa” tivesse suas raízes nas condições sociais da burguesia e das classes médias, a ideologia do século XIX estabeleceu a dona de casa e a mãe como modelos universais de feminilidade. Como a propaganda popular representava a vocação de todas as mulheres em função dos papéis que elas exerciam no lar, mulheres obrigadas a trabalhar em troca de salários passaram a ser tratadas como visitantes alienígenas no mundo masculino da economia pública. Fora de sua esfera “natural”, as mulheres não seriam tratadas como trabalhadoras assalariadas completas. O preço que pagavam envolvia longas jornadas, condições de trabalho precárias e salários repulsivamente inadequados. A exploração que sofriam era ainda mais intensa do que a de seus colegas homens. Nem é preciso dizer que o sexismo emergiu como uma fonte de sobrelucro exorbitante para os capitalistas.

A separação estrutural entre a economia pública do capitalismo e a economia privada do lar tem sido continuamente reforçada pelo primitivismo obstinado do trabalho doméstico. Apesar da proliferação de utensílios para a casa, o trabalho doméstico se manteve, em termos qualitativos, inalterado pelos avanços tecnológicos introduzidos pelo capitalismo industrial. As tarefas domésticas ainda consomem milhares de horas do ano típico de uma dona de casa. Em 1903, Charlotte Perkins Gilman propôs uma definição de trabalho doméstico para refletir as revoluções que haviam transformado a estrutura e o teor das tarefas domésticas nos Estados Unidos:

A expressão “trabalho doméstico” não se aplica a um tipo específico de trabalho, mas a certo grau de trabalho, um estado de desenvolvimento pelo qual todos os tipos de trabalho passam. Todas as indústrias foram uma vez “domésticas”, ou seja, foram realizadas em casa e no interesse da família. Todas as indústrias, desde aquele período remoto, ascenderam a graus mais elevados, exceto uma ou duas que nunca saíram de seu grau primitivo [10].

“O lar”, sustenta Gilman, “não se desenvolveu na proporção de nossas outras instituições.” A economia do lar revela “a manutenção de indústrias primitivas na moderna comunidade industrial e o confinamento das mulheres nessas indústrias e em sua limitada área de expressão” [11].

As tarefas domésticas, Gilman insiste, desvirtuam a humanidade das mulheres: Ela é feminina mais do que o suficiente, como o homem é masculino mais do que o suficiente; mas ela não é humana como ele é humano. A vida em casa não traz à luz nossa humanidade, pois todas as marcas distintivas do progresso humano estão do lado de fora [12].

A verdade da afirmação de Gilman é corroborada pela experiência histórica das mulheres negras dos Estados Unidos. Ao longo da história do país, a maioria das mulheres negras trabalhou fora de casa. No período da escravidão, as mulheres trabalhavam arduamente ao lado de seus companheiros nas lavouras de algodão e tabaco, e, quando a indústria se transferiu para o Sul, elas podiam ser vistas nas fábricas de tabaco, nas refinarias de açúcar e até nas serrarias e em equipes que forjavam o aço para as ferrovias. No trabalho, as mulheres escravizadas eram equivalentes a seus companheiros. Porque elas sofriam uma dura igualdade sexual no trabalho, gozavam de maior igualdade sexual em casa, na senzala, do que suas irmãs brancas que eram “donas de casa”.

Como consequência direta de seu trabalho fora de casa – tanto como mulheres “livres” quanto como escravas –, as mulheres negras nunca tiveram como foco central de sua vida as tarefas domésticas. Elas escaparam, em grande medida, ao dano psicológico que o capitalismo industrial impôs às donas de casa brancas de classe média, cujas supostas virtudes eram a fraqueza feminina e a submissão de esposa. As mulheres negras dificilmente poderiam lutar por fraqueza; elas tiveram de se tornar fortes, porque sua família e sua comunidade precisavam de sua força para sobreviver. A prova das forças acumuladas que as mulheres negras forjaram por meio de trabalho, trabalho e mais trabalho pode ser encontrada nas contribuições de muitas líderes importantes que surgiram no interior da comunidade negra. Harriet Tubman, Sojourner Truth, Ida Wells e Rosa Parks não são mulheres negras excepcionais na medida em que são epítomes da condição da mulher negra.

As mulheres negras, entretanto, pagaram um preço alto pelas forças que adquiriram e pela relativa independência de que gozavam. Embora raramente tenham sido “apenas donas de casa”, elas sempre realizaram tarefas domésticas. Dessa forma, carregaram o fardo duplo do trabalho assalariado e das tarefas domésticas – um fardo duplo que sempre exige que as trabalhadoras possuam a capacidade de perseverança de Sísifo. Como W. E. B. Du Bois observou em 1920:

algumas poucas mulheres nascem livres, e algumas, entre insultos e acusações de adultério, conquistam a liberdade; mas a liberdade foi empurrada com desdém sobre nossas mulheres de pele negra. Com aquela liberdade, elas estão comprando uma independência sem limites e tão valiosa quanto o preço que pagaram por ela, e no fim cada insulto e lamento terão valido a pena [13].

Assim como seus companheiros, as mulheres negras trabalharam até não poder mais. Assim como seus companheiros, elas assumiram a responsabilidade de provedoras da família. As qualidades femininas não ortodoxas da assertividade e da independência – pelas quais as mulheres negras têm sido frequentemente elogiadas, mas mais comumente censuradas – são reflexos de seu trabalho e de suas batalhas fora de casa. No entanto, da mesma maneira que suas irmãs brancas chamadas de “donas de casa”, elas cozinharam e limparam, além de alimentar e educar incontáveis crianças. E, ao contrário das donas de casa brancas, que aprenderam a se apoiar no marido para ter segurança econômica, as esposas e mães negras, geralmente também trabalhadoras, raramente puderam dispor de tempo e energia para se tornar especialistas na vida doméstica. Como suas irmãs brancas da classe trabalhadora, que também carregam o fardo duplo de trabalhar para sobreviver e de servir a seu marido e a suas crianças, as mulheres negras há muito, muito tempo precisam ser aliviadas dessa situação opressiva.

Hoje, para as mulheres negras e para todas as suas irmãs da classe trabalhadora, a noção de que o fardo das tarefas domésticas e do cuidado com as crianças pode ser tirado de seus ombros e dividido com a sociedade contém um dos segredos radicais da libertação feminina. O cuidado das crianças deve ser socializado, a preparação das refeições deve ser socializada, as tarefas domésticas devem ser industrializadas – e todos esses serviços devem estar prontamente acessíveis à classe trabalhadora.

A insuficiência, se não a ausência, de uma discussão pública sobre a viabilidade de transformar as tarefas domésticas em algo socialmente possível é um testemunho dos poderes ofuscantes da ideologia burguesa. O caso não é que o papel doméstico das mulheres não tem recebido nenhuma atenção. Pelo contrário, o movimento de mulheres contemporâneo tem representado as tarefas domésticas como elementos essenciais da opressão feminina. Há, inclusive, um movimento em vários países capitalistas cuja principal preocupação é a situação de opressão das donas de casa. Após chegar à conclusão de que as tarefas domésticas são degradantes e opressivas principalmente porque constituem trabalho não remunerado, esse movimento lançou a reivindicação por salários. Um pagamento semanal do governo, argumentam as ativistas, é a chave para melhorar a condição da dona de casa e a posição social das mulheres em geral.

O Movimento pela Remuneração das Tarefas Domésticas teve origem na Itália, onde um primeiro protesto público foi realizado em março de 1974. Dirigindo-se à multidão reunida no distrito de Mestre, uma das oradoras declarou:

Metade da população mundial não é remunerada – essa é a maior contradição de classe de todas! E essa é nossa luta pela remuneração das tarefas domésticas. É a reivindicação estratégica; neste momento, é a reivindicação mais revolucionária para toda a classe trabalhadora. Se vencermos, a classe vence; se perdermos, a classe perde [14].

De acordo com a estratégia desse movimento, a remuneração contém a chave para a emancipação das donas de casa, e a reivindicação em si é representada como o foco central da campanha pela libertação feminina em geral. Além disso, a luta das donas de casa por remuneração é posta como a questão central de todo o movimento da classe trabalhadora.

As origens teóricas do Movimento pela Remuneração das Tarefas Domésticas podem ser encontradas em um ensaio de Mariarosa Dalla Costa intitulado “Women and the Subversion of the Community” [As mulheres e a subversão da comunidade] [15]. Nesse texto, Dalla Costa defende uma redefinição das tarefas domésticas com base em sua tese de que o caráter privado dos serviços da casa é, na verdade, uma ilusão. A dona de casa, insiste ela, apenas parece estar cuidando das necessidades privadas de seu marido e de suas crianças, mas os reais beneficiários de seus serviços são o atual empregador de seu marido e os futuros empregadores de suas crianças.

[A mulher] tem sido isolada em casa, forçada a realizar um trabalho considerado não qualificado, o trabalho de dar à luz, criar, disciplinar e servir o trabalhador produtivo. Seu papel no ciclo de produção permaneceu invisível porque apenas o produto de seu trabalho, o trabalhador, era visível [16].

A reivindicação de que a dona de casa seja paga é baseada na suposição de que ela produz uma mercadoria tão importante e valiosa quanto as mercadorias que seu marido produz no emprego. Adotando a lógica de Dalla Costa, o Movimento pela Remuneração das Tarefas Domésticas define as donas de casa como criadoras da força de trabalho vendida pelos membros de sua família como mercadoria no mercado capitalista.

Dalla Costa não foi a primeira teórica a propor essa análise da opressão das mulheres. Tanto Mary Inman, em In Woman’s Defense [Em defesa da mulher] (1940) [17], quanto Margaret Benston, em “The Political Economy of Women’s Liberation” [A economia política da libertação feminina] (1969) [18], definem as tarefas domésticas de modo a estabelecer as mulheres como uma classe especial de mão de obra explorada pelo capitalismo chamada “donas de casa”. Os papéis das mulheres na procriação, criação da prole e manutenção da casa possibilitam que os membros de sua família trabalhem – trocando sua força de trabalho por salários –, e isso dificilmente pode ser negado. Mas disso decorre automaticamente que as mulheres em geral, independentemente de sua classe e raça, sejam definidas de modo fundamental por suas funções domésticas? Disso decorre automaticamente o fato de que a dona de casa é realmente a trabalhadora secreta no interior do processo de produção capitalista?

Se a Revolução Industrial resultou na separação estrutural entre a economia doméstica e a economia pública, então as tarefas domésticas não podem ser definidas como um componente integrante da produção capitalista. Elas estão, mais exatamente, relacionadas com a produção no sentido de uma precondição. O empregador não está minimamente preocupado com o modo como a força de trabalho é produzida e mantida, ele só se preocupa com sua disponibilidade e capacidade de gerar lucro. Em outras palavras, o processo de produção capitalista pressupõe a existência de um conjunto de trabalhadoras e trabalhadores exploráveis.

A reposição da força de trabalho não é parte do processo de produção social, mas seu pré-requisito. Ela acontece fora do processo de trabalho. Sua função é a manutenção da existência humana, que é o objetivo final da produção em todas as sociedades [19].

Na sociedade sul-africana, onde o racismo levou a exploração econômica a seus limites mais brutais, a economia capitalista distorce sua separação estrutural em relação à vida doméstica de um modo tipicamente violento. Os arquitetos sociais do apartheid simplesmente determinaram que a mão de obra negra rende lucros mais altos quando a vida doméstica é descartada por completo. Os homens negros são vistos como unidades de trabalho cujo potencial produtivo os torna valiosos para a classe capitalista. Mas sua esposa e suas crianças “são apêndices supérfluos, improdutivos, de modo que as mulheres não são nada além de acessórios para a capacidade de procriação da unidade de trabalho negra masculina” [20].

Essa caracterização das mulheres sul-africanas como “apêndices supérfluos” está longe de ser uma metáfora. De acordo com a lei local, mulheres negras desempregadas são banidas das áreas brancas (87% do país!) e mesmo, na maioria dos casos, das cidades em que seus maridos moram e trabalham.

A vida doméstica da população negra nos centros industriais da África do Sul é vista pelas pessoas partidárias do apartheid como supérflua e não lucrativa. Mas também é vista como uma ameaça: “Representantes do governo reconhecem o papel das mulheres na economia doméstica e temem que sua presença nas cidades leve à formação de uma população negra com taxas de crescimento relativamente constantes” [21].

A consolidação das famílias sul-africanas nas cidades industrializadas é entendida como uma ameaça porque a vida doméstica pode se tornar a base para um nível intensificado de resistência contra o apartheid. Essa é, sem dúvida, a razão pela qual números elevados de mulheres com permissão de residência nas áreas brancas são levados a viver em albergues exclusivamente femininos. Tanto mulheres casadas quanto solteiras acabam morando nesses locais. Neles, a vida familiar é proibida com rigor – marido e esposa não podem visitar um ao outro, e nem a mãe nem o pai podem receber visitas de suas crianças [22].

Essa agressão intensa às mulheres negras na África do Sul já deu resultado, pois apenas 28,2% delas atualmente optam pelo casamento [23]. Por causa da conveniência econômica e da segurança política, o apartheid está corroendo – com a aparente intenção de destruir – a própria tessitura da vida doméstica da população negra. Assim, o capitalismo sul-africano demonstra de modo flagrante o quanto a economia capitalista é totalmente dependente do trabalho doméstico.

A dissolução deliberada da vida familiar na África do Sul não poderia ter sido empreendida pelo governo caso fosse realmente verdade que os serviços realizados pelas mulheres em casa são um componente essencial do trabalho remunerado no capitalismo. O fato de que a vida doméstica pode ser descartada pela versão sul-africana do capitalismo é consequência da separação entre a economia doméstica privada e o processo público de produção que caracteriza a sociedade capitalista em geral. Parece inútil argumentar que, com base na lógica interna do capitalismo, as mulheres devem ser remuneradas pelas tarefas domésticas.

Admitindo que a teoria subjacente à reivindicação por salários seja irremediavelmente falha, não seria politicamente desejável insistir, mesmo assim, na proposta de que as donas de casa sejam remuneradas? Não seria possível invocar um imperativo moral para o direito das mulheres de receber uma remuneração pelas horas dedicadas às tarefas domésticas? A ideia de um pagamento para as donas de casa provavelmente soaria bastante atraente a muitas mulheres. Mas é possível que a atração durasse pouco. Pois quantas dessas mulheres teriam o desejo real de se reconciliar com incumbências domésticas debilitantes e intermináveis em troca de um salário? Poderia um salário alterar o fato de que, como disse Lenin, “as insignificantes e mesquinhas tarefas domésticas esmagam, estrangulam, embrutecem e humilham [a mulher], aprisionam-na à cozinha e ao quarto das crianças e desperdiçam seu trabalho em uma lida brutalmente improdutiva, insignificante, exasperante, embrutecedora e esmagadora” [24]? Seria como se os pagamentos feitos pelo governo às donas de casa acabassem por legitimar ainda mais essa escravidão doméstica.

O fato de que as mulheres beneficiárias de programas de assistência social raramente tenham reivindicado uma compensação por se encarregar das tarefas da casa não é uma crítica implícita ao Movimento pela Remuneração das Tarefas Domésticas? O slogan que articula a alternativa imediata ao sistema desumanizador do bem-estar social frequentemente proposta por elas não é “remuneração pelas tarefas domésticas”, mas sim “renda anual garantida para todas as pessoas”. Entretanto, o que elas desejam no longo prazo é emprego e creches públicas acessíveis. A garantia de uma renda anual funciona, portanto, como um seguro-desemprego até que sejam criados mais empregos com salários adequados, juntamente com um sistema de creches subsidiado.

As experiências de outro grupo de mulheres revelam o caráter problemático da estratégia da “remuneração das tarefas domésticas”. Faxineiras, empregadas domésticas, arrumadeiras – são essas as mulheres que sabem melhor do que ninguém o que significa ser remunerada pelas tarefas domésticas. Sua situação trágica é brilhantemente captada pelo filme de Ousmane Sembène intitulado La Noire de... [A negra de...] [25]. A personagem principal é uma jovem senegalesa que, depois de procurar emprego, se torna preceptora de uma família francesa que vive em Dakar. Quando a família volta para a França, ela a acompanha, entusiasmada. Entretanto, uma vez na França, ela descobre que será responsável não só por cuidar das crianças, mas por cozinhar, limpar, lavar e todos os outros afazeres domésticos. Em pouco tempo, seu entusiasmo inicial cede lugar à depressão – uma depressão tão profunda que ela recusa o salário que a família oferece. A remuneração não pode compensar sua situação análoga à escravidão. Sem recursos para voltar ao Senegal, ela fica tão tomada pelo desespero que escolhe se suicidar para não viver por tempo indefinido o destino de cozinhar, varrer, tirar o pó, esfregar...

Nos Estados Unidos, as mulheres de minorias étnicas – especialmente as negras – têm sido remuneradas por tarefas domésticas há incontáveis décadas. Em 1910, quando mais da metade de todas as mulheres negras trabalhava fora de casa, um terço delas era contratado como trabalhadoras domésticas remuneradas. Em 1920, mais de metade era de serviçais domésticas e, em 1930, a proporção havia crescido para três em cada cinco [26]. Uma das consequências das enormes mudanças na contratação de mulheres durante a Segunda Guerra Mundial foi uma queda muito bem-vinda no número de trabalhadoras domésticas negras. Ainda assim, em 1960, um terço de todas as mulheres negras que estavam empregadas continuava preso às suas ocupações tradicionais [27]. A proporção de trabalhadoras domésticas negras entrou em queda definitiva apenas quando os cargos administrativos se tornaram mais acessíveis às mulheres negras. Hoje, esse número gira em torno de 13% [28].

As enervantes obrigações domésticas das mulheres em geral oferecem uma flagrante evidência do poder do sexismo. Devido à intrusão adicional do racismo, um vasto número de mulheres negras teve de cumprir as tarefas de sua própria casa e também os afazeres domésticos de outras mulheres. E com frequência as exigências do emprego na casa de uma mulher branca forçavam a trabalhadora doméstica a negligenciar sua própria casa e até mesmo suas próprias crianças. Enquanto empregadas remuneradas, elas eram convocadas a ser mães e esposas substitutas em milhões de casas de famílias brancas.

Durante os mais de cinquenta anos de esforços para se organizarem, as trabalhadoras domésticas tentaram redefinir seu trabalho, rejeitando o papel de dona de casa substituta. As obrigações da dona de casa são intermináveis e indefinidas. A primeira reivindicação das trabalhadoras domésticas foi o delineamento nítido do trabalho a ser realizado por elas. O próprio nome de um dos maiores sindicatos atuais de trabalhadoras domésticas, Técnicas Domésticas dos Estados Unidos, enfatiza sua recusa da função de donas de casa substitutas, cujo trabalho é realizar “apenas as tarefas domésticas”. Enquanto as trabalhadoras domésticas permanecerem à sombra da dona de casa, continuarão a receber remunerações que mais se aproximam das “mesadas” da dona de casa do que do salário de uma trabalhadora. De acordo com o Comitê Nacional de Emprego Doméstico, uma técnica doméstica trabalhando em período integral recebeu, em média, apenas 2.732 dólares em 1976, e dois terços delas receberam menos de 2.000 dólares [29]. Embora a proteção oferecida pela lei do salário mínimo tenha sido estendida às trabalhadoras domésticas muitos anos antes, em 1976 uma cifra alarmante de 40% delas ainda recebia salários excessivamente inferiores. O Movimento pela Remuneração das Tarefas Domésticas parte do princípio de que, se as mulheres forem pagas para ser donas de casa, elas consequentemente gozarão de uma condição social mais elevada. Uma história bem diferente é contada pelas antigas lutas das trabalhadoras domésticas remuneradas, cuja condição é mais miserável do que a de qualquer outro grupo profissional no capitalismo.

Hoje, mais de 50% de todas as mulheres dos Estados Unidos trabalham para sobreviver, e elas constituem 41% da força de trabalho do país. Ainda assim, no momento, uma quantidade imensurável de mulheres não consegue encontrar empregos decentes. Como o racismo, o sexismo é uma das grandes justificativas para as elevadas taxas de desemprego entre mulheres. Muitas delas são “apenas donas de casa” porque, na verdade, são trabalhadoras desempregadas. Portanto, o papel de “apenas dona de casa” não seria desafiado de modo mais efetivo pela reivindicação de empregos para as mulheres em um nível de igualdade com os homens, bem como pela pressão por serviços sociais (creches, por exemplo) e benefícios trabalhistas (licença-maternidade etc.), que permitiriam que mais mulheres trabalhassem fora de casa?

O Movimento pela Remuneração das Tarefas Domésticas desencoraja as mulheres de procurar empregos fora de casa, argumentando que “a escravidão a uma linha de montagem não é libertação da escravidão a uma pia de cozinha” [30]. Entretanto, as porta-vozes da campanha insistem que não defendem o aprisionamento contínuo das mulheres no ambiente isolado de sua casa. Elas alegam que, embora se recusem a trabalhar no mercado capitalista em si, não desejam atribuir às mulheres a responsabilidade permanente pelas tarefas domésticas. Como diz uma representante do movimento nos Estados Unidos:

não estamos interessadas em tornar nosso trabalho mais eficiente ou mais produtivo para o capital. Estamos interessadas em reduzir nosso trabalho e, em última instância, em recusá-lo completamente. Mas, enquanto trabalhamos em casa de graça, ninguém se importa verdadeiramente com o quanto e por quanto tempo trabalhamos. O capital só introduz novas tecnologias para cortar os custos de produção depois que a classe trabalhadora obtém ganhos salariais. Apenas se fizermos nosso trabalho ter um custo (isto é, apenas se o tornarmos pouco econômico), o capital “descobrirá” a tecnologia para reduzi-lo. No momento atual, com frequência temos de trabalhar fora, em dupla jornada, para conseguir comprar uma lavadora de louça que poderia reduzir nossas tarefas domésticas [31].

Assim que as mulheres conquistarem o direito de ser pagas por seu trabalho, elas poderão levantar reivindicações por salários mais altos, obrigando, assim, os capitalistas a promover a industrialização das tarefas domésticas. Seria essa uma estratégia concreta para a libertação feminina ou um sonho irrealizável?

Como se espera que as mulheres conduzam a luta inicial pela remuneração? Dalla Costa defende a greve das donas de casa:

Devemos rejeitar a casa, porque queremos nos unir às outras mulheres, lutar contra todas as situações que pressupõem que as mulheres ficarão em casa [...]. Abandonar a casa já é uma forma de luta, uma vez que os serviços sociais que realizamos ali cessariam de ser realizados nessas condições [32].

Mas, se as mulheres saírem de casa, para onde elas irão? Como elas se unirão a outras mulheres? Elas realmente sairão de sua casa motivadas apenas pelo desejo de protestar contra suas tarefas domésticas? Não é muito mais realista convocá-las a “sair de casa” em busca de empregos fora de casa, ou ao menos a participar de campanhas de massa por empregos decentes para as mulheres? Certo, o trabalho sob as condições do capitalismo é um trabalho embrutecedor. Certo, não é criativo e é alienante. Ainda assim, com tudo isso, permanece o fato de que, se estão empregadas, as mulheres podem se unir a suas irmãs – e inclusive a seus irmãos – a fim de desafiar os capitalistas no local de produção. Como trabalhadoras, como militantes ativas no movimento operário, as mulheres podem gerar o verdadeiro poder de combater aquele que é o sustentáculo e o beneficiário do sexismo: o sistema capitalista monopolista.

Se a estratégia de reivindicar remuneração para as tarefas domésticas pouco contribui para propiciar uma solução de longo prazo para o problema da opressão das mulheres, ela também não contribui substancialmente para enfrentar o profundo descontentamento das donas de casa contemporâneas. Estudos sociológicos recentes revelaram que as donas de casa estão mais frustradas com sua vida do que nunca. Quando Ann Oakley realizou entrevistas para seu livro The Sociology of Housework [A sociologia das tarefas domésticas] [33], descobriu que mesmo as donas de casa que inicialmente não pareciam incomodadas por suas tarefas domésticas acabaram expressando uma profunda insatisfação. Os comentários a seguir vieram de uma mulher empregada em uma fábrica:

Você gosta das tarefas domésticas?

Eu não ligo [...]. Acho que não ligo para as tarefas domésticas porque não estou em casa o dia todo. Vou para o trabalho e só faço tarefas domésticas durante metade do dia. Se eu as fizesse o dia inteiro, eu não iria gostar – o trabalho da mulher nunca acaba, ela sempre está fazendo alguma coisa. Mesmo antes de dormir, você ainda precisa fazer alguma coisa – esvaziar os cinzeiros, lavar uns copos. Você continua trabalhando. É a mesma coisa todo dia; você não pode dizer que não vai fazer aquilo, porque você tem de fazer – como preparar uma refeição: precisa ser feita porque, se você não fizer, as crianças não vão comer [...]. Acho que você se acostuma, você apenas faz automaticamente [...]. Sou mais feliz no trabalho do que sou em casa.

O que você diria que há de pior em ser dona de casa?

Acho que tem dias em que você sente que vai levantar e fazer as mesmas coisas de sempre – você fica entediada, presa à mesma rotina. Imagino que, se você perguntar a qualquer dona de casa, se ela for honesta, vai dizer que se sente como uma criada a metade do tempo; todas pensam, quando levantam de manhã: “Ah, não, tenho as mesmas coisas de sempre para fazer hoje, até a hora de ir para a cama à noite”. É fazer as mesmas coisas – tédio [34].

Os salários diminuiriam esse tédio? Essa mulher certamente diria que não. Uma dona de casa em tempo integral contou a Oakley sobre o caráter compulsivo das tarefas domésticas: “Acho que o pior é que você tem de fazer o trabalho porque você está em casa. Mesmo que eu tenha a opção de não fazê-lo, não sinto que poderia realmente não fazê-lo porque sinto que devo fazê-lo” [35]. Provavelmente, ser remunerada para fazer esse trabalho agravaria a obsessão dessa mulher.

Oakley chegou à conclusão de que as tarefas domésticas – particularmente quando são ocupações de tempo integral – invadem a personalidade da dona de casa tão profundamente que não é possível distingui-la de seu trabalho: “Em um sentido determinante, a dona de casa é seu trabalho: a separação entre os elementos subjetivos e objetivos nessa situação é intrinsecamente mais difícil” [36]. Com frequência, a consequência psicológica é uma personalidade tragicamente reprimida, assombrada pelo sentimento de inferioridade. A libertação psicológica dificilmente pode ser atingida com a simples remuneração da dona de casa.

Outros estudos sociológicos confirmaram o agudo desencantamento sofrido pelas donas de casa contemporâneas. Quando Myra Ferree[37] entrevistou mais de cem mulheres em uma comunidade operária próxima a Boston, “quase o dobro das donas de casa em relação às mulheres que trabalhavam fora revelaram estar insatisfeitas com sua vida”. Não é preciso dizer que muitas das trabalhadoras não tinham um emprego inerentemente gratificante: eram garçonetes, operárias, datilógrafas, vendedoras de lojas de departamentos e supermercados etc. Ainda assim, a possibilidade de deixar o isolamento de sua casa, “sair e ver outras pessoas”, era tão importante para elas quanto seus ganhos. Será que as donas de casa que sentem estar “ficando loucas dentro de casa” receberiam bem a ideia de ser pagas por aquilo que as deixa loucas? Uma mulher reclamou que “ficar em casa o dia todo é como estar na cadeia” – será que a remuneração derrubaria as paredes de sua cela? O único caminho realista para escapar dessa cadeia é procurar um emprego fora de casa.

Hoje, mais de 50% de todas as mulheres dos Estados Unidos trabalham, e cada uma dessas mulheres é um forte argumento para que o peso das tarefas domésticas seja aliviado. Na verdade, iniciativas capitalistas já começaram a explorar as novas necessidades históricas que as mulheres têm de se emancipar de seus papéis como donas de casa. Cadeias de fast food que geram lucros ilimitados, como McDonald’s e Kentucky Fried Chicken (KFC), são testemunhas de que mais mulheres trabalhando significa menos refeições preparadas em casa diariamente. Por mais insípida e sem nutrientes que seja sua comida, por mais explorada que seja sua mão de obra, essas empresas de fast food chamam a atenção para a cada vez mais próxima obsolescência da dona de casa. O que é necessário, claro, são novas instituições sociais que assumam uma boa parcela das velhas obrigações da dona de casa. Esse é o desafio que emana das fileiras cada vez maiores de mulheres da classe trabalhadora. A reivindicação pelo atendimento universal e subsidiado em creches é uma consequência direta do número crescente de mães trabalhadoras. E, à medida que mais mulheres se organizam em torno da reivindicação por mais empregos – empregos em termos de completa igualdade com os homens –, questões sérias são cada vez mais levantadas a respeito da viabilidade futura das obrigações das mulheres como donas de casa. É bem verdade que a “escravidão a uma linha de montagem” não é em si a “libertação da pia da cozinha”, mas a linha de montagem, sem dúvida, é o mais poderoso incentivo para que a mulher pressione pela eliminação de sua antiga escravidão doméstica.

A abolição das tarefas domésticas enquanto responsabilidade privada e individual das mulheres é claramente um objetivo estratégico da libertação feminina. Mas a socialização das tarefas domésticas – incluindo o preparo das refeições e o cuidado das crianças – pressupõe colocar um fim ao domínio do desejo de lucro sobre a economia. Os únicos passos significativos na direção da eliminação da escravidão doméstica foram dados, de fato, pelos países socialistas atuais. As trabalhadoras, portanto, têm um interesse vital e particular na luta pelo socialismo. Além disso, no capitalismo, as campanhas por empregos em base de igualdade com os homens, combinadas com movimentos pela criação de instituições como creches subsidiadas pelo poder público, contêm um potencial revolucionário explosivo. Essa estratégia coloca em dúvida a validade do capitalismo monopolista e deve, em última análise, apontar na direção do socialismo.

[1] Ann Oakley, Woman’s Work, cit., p. 6.

[2] Barbara Ehrenreich e Deirdre English, “The Manufacture of Housework”, Socialist Revolution, v. 5, n. 26, out.-dez. 1975, p. 6.

[3] Friedrich Engels, Origin of the Family, Private Property and the State (org. Eleanor Burke Leacock, Nova York, International Publishers, 1973) [ed. bras.: Origem da família, da propriedade privada e do Estado, trad. Leandro Konder, Rio de Janeiro, Expressão Popular, 2012]. Ver capítulo 2. A introdução de Leacock à edição citada contém muitas observações esclarecedoras a respeito da teoria de Engels sobre o surgimento da supremacia masculina.

[4] Barbara Wertheimer, We Were There, cit., p. 12.

[5] Barbara Ehrenreich e Deirdre English, “The Manufacture of Housework”, cit., p. 9.

[6] Barbara Wertheimer, We Were There, cit., p. 12.

[7] Citado em Rosalyn Baxandall et al. (org.), America’s Working Women, cit., p. 17.

[8] Barbara Wertheimer, We Were There, cit., p. 13.

[9] Barbara Ehrenreich e Deirdre English, “The Manufacture of Housework”, cit., p. 10.

[10] Charlotte Perkins Gilman, The Home: Its Work and Its Influence (Chicago/Londres, University of Illinois Press, 1972; reimpressão da edição de 1903), p. 30-1.

[11] Ibidem, p. 10.

[12] Ibidem, p. 217.

[13] W. E. B. Du Bois, Darkwater, cit., p. 185.

[14] Discurso de Polga Fortunata, citado em Wendy Edmond e Suzie Fleming (orgs.), All Work and No Pay: Women, Housework and the Wages Due! (Bristol, Falling Wall, 1975), p. 18.

[15] Mariarosa Dalla Costa e Selma James, The Power of Women and the Subversion of the Community (Bristol, Falling Wall, 1973).

[16] Ibidem, p. 28.

[17] Mary Inman, In Woman’s Defense (Los Angeles, Committee to Organize the Advancement of Women, 1940). Ver também idem, The Two Forms of Production Under Capitalism (Long Beach, s.n., 1964).

[18] Margaret Benston, “The Political Economy of Women’s Liberation”, Monthly Review, v. 21, n. 4, set. 1969.

[19] “On the Economic Status of the Housewife”, Political Affairs, v. 53, n. 3, mar. 1974, p. 4, editorial.

[20] Hilda Bernstein, For Their Triumphs and For Their Tears: Women in Apartheid South Africa (Londres, International Defence and Aid Fund, 1975), p. 13.

[21] Elizabeth Landis, “Apartheid and the Disabilities of Black Women in South Africa”, Objective: Justice, v. 7, n. 1, jan.-mar. 1975, p. 6. Trechos desse texto foram publicados em Freedomways, v. 15, n. 4, 1975.

[22] Hilda Bernstein, For Their Triumphs and For Their Tears, cit., p. 33.

[23] Elizabeth Landis, “Apartheid and the Disabilities of Black Women in South Africa”, cit., p. 6.

[24] Vladimir Ilitch Ulianov Lenin, “A Great Beginning”, em Collected Works, v. 29 (Moscou, Progress, 1966), p. 429. Panfleto originalmente publicado em julho de 1919.

[25] Lançado nos Estados Unidos com o título Black Girl.

[26] Jacquelyne Johnson Jackson, “Black Women in a Racist Society”, cit., p. 236-7.

[27] Victor Perlo, Economics of Racism, U.S.A.: Roots of Black Inequality (Nova York, International Publishers, 1975), p. 24.

[28] Robert Staples, The Black Woman in America, cit., p. 27.

[29] Daily World, 26 jul. 1977, p. 9.

[30] Mariarosa Dalla Costa e Selma James, The Power of Women and the Subversion of the Community, cit., p. 40.

[31] Pat Sweeney, “Wages for Housework: The Strategy for Women’s Liberation”, Heresies, jan. 1977, p. 104.

[32] Mariarosa Dalla Costa e Selma James, The Power of Women and the Subversion of the Community, cit., p. 41.

[33] Ann Oakley, The Sociology of Housework (Nova York, Pantheon, 1974).

[34] Ibidem, p. 65.

[35] Ibidem, p. 44.

[36] Ibidem, p. 53.

[37] Psychology Today, v. 10, n. 4, set. 1976, p. 76.